domingo, 4 de dezembro de 2011

Henry Kissinger disseca estratégias diplomáticas da China


Sobre a China, de Henry Kissinger. Tradução de Cassio de Arantes Leite. Editora Objetiva, 576 pgs. R$ 54,90

Por Williams Gonçalves

Com despretensioso título que revela a peculiar falsa modéstia do autor, “Sobre a China”, o último livro de Henry Kissinger, poderá ser agora lido em português. Os leitores brasileiros interessados em conhecer mais o país que avança aceleradamente para se tornar a principal potência mundial e os que se interessam também pelas negociações diplomáticas que aproximaram esse país dos Estados Unidos terão a imperdível oportunidade de satisfazer sua curiosidade nesse surpreendente livro de difícil classificação. Misto de História, de memórias, de reflexão estratégica e de análise política, “Sobre a China” traz revelações muito importantes para a compreensão da política mundial contemporânea.

Obras inspiraram aproximação de EUA e China

Dois livros foram fundamentais na carreira acadêmica e política do talentoso professor de Harvard: “Um mundo restaurado: Metternich, Castlereagh e os problemas da paz — 1812-1822” e “Armas nucleares e política externa”, ambos publicados em 1957. No primeiro, Kissinger defende que, em um sistema internacional multipolar, a paz somente pode ser alcançada mediante o equilíbrio de poder; no segundo, ele sustenta que a doutrina estratégica de defesa havia de se adaptar à existência dos arsenais nucleares.

Teria sido a leitura desses livros que levou o presidente dos Estados Unidos Richard $a convidá-lo a ocupar a função de Conselheiro para Segurança Nacional. Conselheiro até 1972, Kissinger converteu-se em Secretário de Estado em 1973, ocupando esse posto até 1976, nele permanecendo mesmo após a renúncia do presidente em 1974, sob ameaça de impeachment.

Esses dois livros contêm as ideias básicas que inspiraram a audaciosa reviravolta estratégica promovida por Nixon de iniciar um diálogo diplomático com a China em 1969, depois de 20 anos de silêncio profundo. Kissinger, humildemente, atribui ao presidente a excep$sagacidade de perceber que a aproximação à China constituía a chave que abriria a porta para a saída dos Estados Unidos do atoleiro em que estavam metidos no Vietnã. Seu mérito teria sido apenas o de negociar com os chineses, mantendo-se sempre fiel à concepção estratégica de Nixon.

O êxito da grande manobra teria sido fruto da coincidência do plano de Nixon com as ideias alimentadas pelos estrategistas chineses de sair do isolamento em que a Revolução Cultural havia colocado a China e, ao mesmo tempo, de enfrentar a ameaça de um $ataque soviético. Tanto norte-americanos como chineses, orientados pela lógica da realpolitik, segundo a qual as razões de Estado situam-se acima das diferenças ideológicas, davam-se conta de que, para a realização de seus respectivos objetivos nacionais, convinha deixar de lado as divergências e se concentrar nos pontos comuns e fundamentais de entendimento.

A capacidade de saber discernir com clareza a contradição principal e o aspecto principal da contradição é, para Kissinger, atributo reservado a poucos. Pertence, por assim $, a inteligências especiais, situadas em patamar elevado. As da planície permanecem enredadas em debates sem fim sobre coisas como a súbita transformação do inimigo comunista em aliado ou com incidentes como o da Praça da Paz Celestial. Homens excepcionais como Metternich, Castlereagh, Nixon, Kissinger, Mao Tsé-Tung e Zhou Enlai têm o talento para promover uma mudança radical na geopolítica mundial e inaugurar uma nova ordem internacional.

Mao Tsé-Tung torcia pela eleição do direitista Nixon

A excepcionalidade de Mao Tsé-Tung, Zhou Enlai e Deng Xiaoping se explica pela magnificência da História e da cultura chinesas. Por isso, quase metade de “Sobre a China” é dedicada a apresentar essa História e os aspectos singulares da cultura do antigo Império do Meio. Os líderes chineses são herdeiros de um Estado-civilização que produziu um pensador da estatura de Confúcio e que elaborou uma forma própria de lidar com os homens e com as coisas do mundo. Como Kissinger sublinha no prólogo, em qual outro país o governante pode reunir seus generais antes de iniciar a campanha militar e “invocar princípios estratégicos de um episódio ocorrido mais de um milênio antes”, como Mao o fez antes de as tropas chinesas se lançarem contra os indianos em outubro de 1962? Naturalmente, só um país de cultura rica e requintada, que criou seu próprio jogo de intelecto — o wei qi (jogo de peças circulares). Equivalente ao conhecido jogo de xadrez, que objetiva a vitória final mediante o xeque-mate, o wei qi é, diferentemente, um jogo de campanha prolongada que ensina a arte do cerco estratégico, ou seja, a artimanha de tirar o inimigo do combate sem confrontá-lo, apenas levando-o à posição de isolamento.

O encontro de Nixon com Mao em 1972 foi, portanto, a reunião dos representantes de dois países excepcionais que, tal como aquele de Metternich e Castlereagh em Viena, em 1815, determinou mudanças de amplo alcance na estrutura do poder mundial. A China, que havia sido dominada e submetida a toda espécie de humilhações pelos ingleses e pelos demais ocidentais por todo um século, até recuperar a autonomia e a dignidade sob a liderança de Mao e do Partido Comunista, voltava a ocupar o lugar a que estava habituada desde havia muito, aquele de Estado central nas relações internacionais. Segundo Kissinger, destacado ator e cronista do processo político-diplomático que culminou nesse encontro histórico, o diálogo permanente que os novos líderes políticos de Estados Unidos e China têm sabido manter constitui a chave para a paz mundial.

Enfim, o autor, que é capaz de reproduzir diálogos espirituosos — como aqueles com Mao, em que Kissinger se surpreende quando seu interlocutor revela que torcera pela eleição de Nixon, por nutrir simpatias pelos direitistas, ou quando se lembra de sua amizade com Chiang Kai-shek —, já não se mostra muito criativo quando o tema é o futuro. Talvez um tanto inebriado pelo que julga sua grande obra, não leva muito em consideração a grave crise por que passam os Estados Unidos, e continua apostando que o país e a China exercerão a liderança no mundo, à frente de uma Comunidade do Pacífico.

*WILLIAMS GONÇALVES é professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Uerj

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